De acordo com o projeto “Mapas da (In) Justiça”, desenvolvido pelo Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da FGV Direito São Paulo, nenhum policial que atua no estado de São Paulo foi responsabilizado por alguma abordagem letal e violenta praticada entre os anos de 2018 e 2024. A pesquisa analisou 859 inquéritos policiais nesse período e revelou que, em todos os casos, o Ministério Público optou pelo arquivamento do processo, sem que nenhum agente do Estado fosse preso em decorrência de morte que tenha ocorrido durante uma ação policial.
A análise das decisões judiciais revelou a predominância de uma lógica que legitima preventivamente a ação policial e inviabiliza a responsabilização penal dos agentes. Em 100% dos casos, nenhum policial foi preso em decorrência da morte provocada durante a ação. Além disso, a pesquisa informou que 946 pessoas morreram nesse período em decorrência de intervenção policial, sendo que a maior parte das vítimas (62% do total) eram pretas e pardas.
Os dados também mostram que a maioria das mortes (78%) ocorreu em vias públicas e foi provocada por policiais em serviço (88%). No entanto, os pesquisadores tiveram acesso a apenas uma parcela de casos, pois um número considerável de inquéritos policiais é mantido em segredo de justiça.
A coordenadora da pesquisa, Julia Drummond, destacou que os dados reunidos revelam um cenário de persistente impunidade, no qual a atuação policial letal é sistematicamente legitimada por narrativas oficiais, sustentadas em registros documentais marcados por seletividade racial, apagamentos e omissões técnicas. Além disso, a análise dos boletins de ocorrência mostra que categorias genéricas como “prática de crime” ou “atitude suspeita” são amplamente mobilizadas para justificar abordagens violentas, com forte incidência sobre corpos negros.
Em apenas 8,9% dos casos de morte decorrentes de intervenção policial no estado de São Paulo, houve perícia no local do crime. E em 85% dessas ocorrências, não foi feito o exame de resíduo de pólvora nas mãos das vítimas para confirmar ou contestar a hipótese de confronto. A investigação técnico-científica, em tais casos, tem sido feita com base em apenas um laudo, geralmente o necroscópico, o que evidenciaria “um padrão de investigação incompleta”.
Os dados da pesquisa também revelam que, em vez de promover uma apuração técnica, rigorosa e imparcial, a perícia atua frequentemente para respaldar as versões dos policiais. Em 95% dos relatórios apresentados pelos policiais para explicar os casos de letalidade, é invocada a legítima defesa, ou seja, que foi preciso usar a força por causa de um comportamento agressivo da vítima.
Para a professora Julia Drummond, é preciso colocar em funcionamento uma série de ações para que haja mais controle e transparência sobre as atividades policiais. Ela citou a criação de um banco de dados integrado entre Secretaria de Segurança Pública, Ministério Público e Tribunal de Justiça e a implementação de um sistema unificado de registro e acesso a essas informações, disponível para órgãos públicos e a sociedade civil.
O projeto “Mapas da (In) Justiça” tem o objetivo de disponibilizar dados sobre a letalidade policial contra a população, especialmente a negra, no estado de São Paulo. A plataforma interativa do projeto permite a consulta de investigações e crimes contra pessoas negras no estado de São Paulo e disponibiliza visualizações de mapas em 3D da letalidade policial no estado, com base em dados sobre mortes decorrentes de intervenção policial, perfil sociodemográfico da população, infraestrutura construída e reconhecimento de áreas verdes.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse, em nota, que “as forças de segurança do Estado são instituições legalistas e não compactuam com excessos ou desvios de conduta de seus agentes”. Já o Ministério Público de São Paulo (MPSP) declarou que a resposta sobre o arquivamento dos inquéritos policiais “exigiria uma análise individualizada do mérito de cada um dos casos”.
